terça-feira, maio 23, 2006

BARRICADA

Luiz Fernando Veríssimo é o cara. O pai dele pode até ser muito mais escritor, mas ele tem um que de brilhante que só quem escreve crônicas tem: a captura do momento. Qualquer gênio pode escrever uma novela de oitocentas páginas sobre o fechamento do Mar Mediterrâneo pelos Turcos Otomanos, mas vai escrever alguma coisa interessante em meia página sobre o travessão ou sobre uma tampinha amassada no canto do quarto.

Esse texto é de longe o que eu mais gosto, lembro que o li numa revista Veja lá no Período Mesozóico lá no Polivalente, depois consegui uma cópia e arranquei, e acabei perdendo-a nas mudanças da vida. Se a internet nunca tivesse servido pra nada na minha vida, hoje eu já teria razões pra agradecer a sua existência - até pela frase que coloquei em negrito, que é sensacional.

Abrrrrrraço, e boa leitura.


BARRICADA
Luis Fernando Veríssimo

Um dia, irmão, comemoraremos nossa vitória com um banquete. Todos os que lutaram, ou que só usaram o barrete. E bêbados de nós mesmos, a mesa coberta com os destroços do combate - difícil dizer o que é sangue e o que é molho de tomate Brindaremos as cadeiras vazias dos que lá não estão. Os fantasmas de uma geração.
Um que morreu no exílio e foi devorado por vermes estrangeiros.
Um que enlouqueceu um pouco e tem delírios passageiros.
O que comprou um sitio em Cafundós do Oeste e nos manda fotos tristes dos seus pés em tamancos.
O que nós só vemos na rua, esbaforido, correndo entre dois bancos.
O que era anarquista e acabou na IBM.
O que era poeta maldito e acabou na MPM.
O que casou com a Vivinha e dizem que come a sogra.
O que era seminarista e transa droga.
Um que ia mudar o mundo, e se mudou.
O que ia ser melhor de nós todos, e vacilou.
Nossa Rosa Luxemburgo, que abriu uma butique.
Nosso quase Che Guevara, que hoje vive de trambique.
Restaremos você e eu, irmão.
E os balões circundarão nossas cabeças como velhos remorsos. E o pianista ruirá sobre as teclas como o Império Bizantino. E os garçons olharão os relógios e desejarão a nossa morte. Seremos sentimentais e um pouco arrogantes. Danem-se nossas trapalhadas, estivemos nas barricadas! Esta civilização nos deve, pelo menos, outra rodada.
Um dia, irmão, um dia.
Você proporá um brinde à razão e nossos copos vazios, com o choque, explodirão. Eu cantarei velhos hinos revolucionários, sob o protesto dos vizinhos, certamente reacionários. Brindaremos à fraternidade universal e à luta antiimperialista e à Nena do Tropical, que dava desconto pra esquerdista. Choraremos um pouco. E cataremos, entre as migalhas da mesa - como oráculos o futuro nas vísceras de um cágado -, vestígios do nosso passado.
O toco de um Belmonte Liso.
Meu Deus, o meu dente do siso!
Bilhetes de loteria que nunca deram e de namoradas que também não.
A letra semi-apagada de Great Pretender .
Um tostão.
Bêbados de autopiedade, brindaremos esta cidade onde nascemos e morremos mais de uma vez (só eu forma três) mas salvamos do inimigo. Nosso reino, nosso umbigo. Não temos placas na rua como heróis da Resistência, mas temos a consciência de que os bárbaros não passaram. Mas sei que no fim desses disse-que-disses os dois prostrados como mãe de misses já com aquele olhar do Ulysses você me dirá no nariz, com um bafo que, bem aproveitado, seria uma força motriz:
- Como, heróis? Como, não passaram? Meu querido, não te falaram?
E completara com um gargalo, a caminho do assoalho:
- Os bárbaros ganharam!

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